Pular para o conteúdo

Roberto Kaz, Anáfora e Ópera

Roberto Kaz fez uma série de escolhas criativas na reportagem “Quase Todos Presos“, para a revista piauí deste março de 2017, que narra os imbróglios da corrupção em Foz do Iguaçú. O lead descreve sem descrever, atiça:

Essa é uma história brasileira. E, por ser uma história brasileira, é uma história que mistura dinheiro público e privado. Essa é a história de uma cidade — Foz do Iguaçu — em que um prefeito, acusado de corrupção, acaba afastado do cargo. Mas é também a história de outro prefeito, ficha suja, que concorre ao terceiro mandato, é eleito e tem a candidatura indeferida antes de ser empossado. Essa é uma história brasileira e, por ser uma história brasileira, é uma história que mistura Polícia Federal, produtos Mary Kay e o cartunista Ziraldo.

O uso da anáfora (repetição das frases, que vai guiando o parágrafo) e o inaudito das ocorrências citadas, se somam para gerar uma sensação de absurdo. O trecho apela para um clichê (um vira-latismo no sentido de “só no Brasil uma coisa dessas”), mas mesmo assim tem força e não cai no nariz de cera, pois informa.

Alguns parágrafos adiante, ele reelabora o motivo com uma comparação:

Se essa história fosse uma ópera, baixariam as cortinas e terminaria, aqui, o primeiro ato. Ou, por outra: talvez houvesse, antes do fim, um breve monólogo. Seria um solilóquio funesto, daqueles que antecipam um desastre, proferido por um mendigo, um cego, uma ama ou uma bruxa. A orquestra tocaria um acordo macabro, as luzes se acenderiam e o público desfrutaria do intervalo.

Mas, como foi dito, a história é brasileira. Troca-se o monólogo por uma conversa grampeada; troca-se o mendigo por um político; e troca-se o desastre por uma licitação.

O tema da ópera vai se repetir de tempo em tempo marcando as mudanças de seção da matéria. A troca dos elementos próprios desse gênero pelo prosaico da política é humorístico no mínimo e chega ao surreal:

Na ópera clássica, o segundo ato é geralmente encerrado com um trecho musical grandioso, chamado concertato. Os personagens principais voltam ao palco para anunciar, em melodias distintas — e por vezes simultâneas —, uma tensão a ser resolvida no próximo ato. Se o segundo movimento dessa história terminasse com a posse de Ivone Barofaldi, o concertato iguaçuense seria entoado por ela, pelo prefeito afastado, pelo quarteto de delatores e pelo servidor Roberto Basílio de Oliveira — que a essa altura já não estava mais ligado à trama, apesar de ter sido o personagem que deflagrara a história.

São recursos interessantes, que tem até um ar de crítica artística, já que expõem a estrutura operística (e deixa a ideia: como seria montar uma ópera com esse assunto ou similar, de fato?). Por outro lado, é um expediente frívolo: retirado do texto, não lhe faz falta; não acrescenta quase nada aos fatos que reúne. É de se pensar como usar algo nesse sentido em uma reportagem de forma mais orgânica e necessária.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *