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A arte contra a natureza

A Piaui #44 perfilou um artista contemporâneo brasileiro, Cadu Costa, apresentando algumas de suas obras. O perfil foi publicado na Esquina, seção de textos curtos e bem-humorados que abre a revista. Meu problema com essa reportagem em particular é que o bom humor dela toda me pareceu ser fundado em preconceitos sobre arte contemporânea. Ao longo do texto, nas entrelinhas, constrói-se o desprezo por esse fazer artístico, seguindo um ideal conservador anacrônico.
Para construir esse desprezo, um dos recursos do texto é o distanciamento irônico frente a tudo o que relata:
Os espectadores que encerravam a visita – maravilhados ou furiosos com a curadora Laura Lima, cujas convicções sobre o fato artístico autorizavam-na a despejar um caminhão de areia nos galpões da Bienal (…) [grifo nosso]
“Despejar um caminhão de areia”, assim posto, parece denunciar uma fraude. Laura Lima encheu uma sala de areia e chamou de arte; é isso que a matéria diz. É isso, de fato, que a matéria diz sobre todas as obras que cita. O autor também se diz: “cujas convicções sobre o fato artístico”, ignorando a possibilidade de dizer ao leitor quais seriam essas “convicções”, porque o que ele quer é significar que são inescrutáveis. No site da Bienal, o repórter descobriria o tema da exposição: o absurdo, o instável.
Depois, atenta-se muito para que sentimentos as pessoas tiveram em relação à obra. Os espectadores  ficaram maravilhados ou encantados; outros furiosos ou indignados. Antes de mais nada, é preciso notar que crer que a obra deva “maravilhar” ou “encantar” já parte de um pressuposto anacrônico. E se entende que alguém se “enfureceu” ou se “indignou” porque se sentiu enganado; “isso não é arte”, grita o repórter de Piaui frente ao que pensa ser um embuste. Ele chegou à exposição com crenças bem definidas do que deve ser a arte. Como o que havia não correspondeu às suas expectativas, supôs a fraude. Como diz Marcelo Coelho: “para o crítico conservador, se ele não vê nada, não há nada para ver”.
Além disso, essa divisão de sentimentos também serve para definir quem é quem no público. Quando tratam da obra Flat Sounds:
“(…) iam para o estacionamento, ligavam o carro e partiam em plena meditação estética, sopesando os destinos da arte contemporânea. Não estivessem eles tão absortos no encantamento ou na indignação com o que acabavam de ver (…) Os mais distraídos certamente encararam esse exagero de obstáculos como uma afronta ao balanceamento do carro. Entretanto, a ouvidos mais afinados com as estratégias da arte contemporânea, o efeito se impunha rápido – e sublime.”  [grifo nosso]
A “meditação estética” implica em estar o público “absorto“, “distraído“. Perplexo, é a palavra, talvez, que o repórter queira trazer. De qualquer modo, segue daí uma divisão dos visitantes: os que não perceberam o que significava a arte; e aqueles que estavam acostumados com a arte contemporânea. Os primeiros são claramente as pessoas “normais”, o repórter da revista e o presumível leitor risonho; os segundos fazem parte do compadrio que aceita essas maluquices — que tem aquelas “convicções” que lhes deixam fazer isso.
A ideia de que os envolvidos com esse tipo de arte aceitam tudo e que seus conceitos são incompreensíveis ao cidadão comum aparece de novo nesse parágrafo:
Nada, porém, representou tanta dedicação à arte quanto a obra 12 Meses. (…) No fim das contas – literalmente, no caso -, a ponta do V tomou a forma de um vale, não de uma escarpa, mas isso não impediu que a obra fosse recebida com louvor em museus e galerias de São Paulo e do Rio e – misteriosos são os desígnios da arte – num centro cultural na cidade inglesa de Plymouth.”  [grifo nosso]
Há, porém, um elemento novo aí. O autor alude à quantidade de dedicação que o artista teve. Isso parece à toa, mas é uma indicação do tipo de arte que o repórter esperava: um arte que resulta de esforço. Provas dessa interpretação são a linha fina da matéria e a frase que a fecha. A primeira diz: “pintar a Capela Cistina é coisa de principiante“. Refere-se à igreja pintada por Michelangelo, ao esmero técnico dos renascentistas e implica, na piadinha, em dizer que, com areia, sismógrafos e redutores de velocidade os contemporâneos querem ser mais que o pintor italiano.

Mas nunca se tratou de superar ninguém. O perfil nos leva a pensar por esse viés, porque é a partir dessa crença que ele fruiu as obras da Bienal. Partiu das ideias de técnica, de superação constante, da arte que se presta a mostrar a beleza, a emocionar, a encantar. Ser sublime ou não, como um parágrafo anterior impõe a Flat Sounds, é um objetivo de uma época antiga, não obrigatório aos artistas atuais.

A frase final, meio deslocada do texto, é a que segue:
Torçamos apenas para que seja tolerante com a natureza e não sequestre o canto dos passarinhos para melhorar seus gorjeios.
Esse trecho decorre de todo conteúdo implicíto que citei. Aqui, flagrante, se diz que a arte contemporânea é um excesso. Tentativa de estar acima, de melhorar o que não se melhora. É um arte contra a natureza — está aí dito, eu não exagero — não-natural, é quase dizer que é uma arte doente: o mesmo que Monteiro Lobato disse das pinturas de Anita Malfatti:
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêm as coisas e em conseqüência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. (…)
A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (…) Nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.” [grifo nosso]
Sem tirar nem por, toda a ideologia por detrás desse perfil da Piaui. No fim das contas, um péssimo perfil em uma boa revista, gerando desinformação e afastando as pessoas da arte mais recente, em vista de uma apreciação “tranquila” (como diria Merleau-Ponty) da arte clássica.

1 comentário em “A arte contra a natureza”

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